quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O trem

Doze anos na mesma empresa, na mesma função e com apenas pequenos reajustes no salário. 
Sempre fui um trabalhador fiel, sempre cumpri minhas obrigações e nesses doze anos de empresa, faltei apenas três vezes, quando minha mãe morreu, quando fui atropelado e quando fui assaltado, pois tive que ir a delegacia fazer o boletim de ocorrência.
As pessoas que entram aqui, na minha mesma função, sobem de cargo em um ano, pois ficam “puxando o saco” do encarregado e “mamando nas tetas” da gerência.   Agora, eu não, não sou de ficar “babando ovo” de filho da puta nenhum, eu deveria e queria ser reconhecido pelo meu trabalho, pelas coisas que faço aqui.
Quando eu era criança eu tinha um sonho, era o de ser piloto de helicóptero. Eu ficava horas olhando para o céu, deitado em cima da laje, vendo quando eles passavam com suas pás giratórias metálicas, fazendo seu estrondoso zunido, estremecendo as coisas ao seu redor.   Era lindo quando eu via o da polícia ou do bombeiro, suas cores fortes mostravam a sua imponência, seus vôos rasos mostravam a habilidade de seu piloto e ai daquele que cruzasse seu caminho.
Aos dezessete me alistei na aeronáutica do Brasil, mas fui dispensado por excesso de contingente.  Depois tentei fazer de tudo para entrar na aeronáutica, pois esse era o melhor caminho para realização do meu sonho, pois eu era de família humilde e não podia pagar escola militar particular, todas as tentativas foram barradas por imposições da política brasileira.  Brasil, bosta de país com essa língua chula que nem nós sabemos falar direito.  
Esta foi a maior decepção da minha vida, foi maior até que quando morreu minha mãe.
Bom, com meus sonhos interrompidos, tive que trabalhar. Entrei nessa empresa, nesse cargo ridículo, extremamente simples que não explora meu potencial.  Financiei a casa pela Caixa e comprei um carro.
Nunca fui muito mesmo de ter vida social ativa, mas mesmo assim, há seis anos encontrei a Lucia, com quem me casei e tive dois filhos, o Leandro e Thiago.
A Lucia também nunca foi de sair, baladas, amigas, na realidade a gente tem muito em comum.  Ela trabalha como Técnica em Contabilidade, ela me disse que seus sonhos estão realizados, pois tudo o que ela sempre quis foi isso, bom trabalho, bom marido (eu), boa casa, bom carro e filhos.
Tudo isso, não me faz feliz.  Eu não agüento mais essa vida, e já tentei de tudo, psicóloga, centro, judaísmo, islamismo, budismo, catolicismo, e até igreja evangélica, mas nada tira de dentro de mim o gigantesco desdém que tenho pelo ser humano e suas crenças e deuses.
Tentei me matar algumas vezes, para ser mais preciso três vezes, mas não fui corajoso ou covarde o suficiente.  Tinha comprado um revolver e o engatilhava e apontava em minha cabeça.
Ninguém consegue me entender, ou essas pessoas que me rodeiam são tão idiotas que não vêem o que está a sua frente.
Então resolvi colocar um fim em tudo isso de uma vez por todas, mas não vou deixar minha história passar em vão, quero ser lembrado. 
Aliás, se você estiver lendo essa redação é porque tudo já aconteceu.
Peguei o trem por quatro dias seguidos, olhando passo a passo o que eu teria que fazer, planejando minhas mortes.
Então chegou o dia, acordei as quatro, escrevi uma carta de despedida para Lucia, para os meninos e para minha irmã, que não via há três anos,  peguei o carro, fui ao posto e comprei um galão de quatro litros de gasolina.
Eu já tinha comprado um acendedor de churrasqueira à bateria.
Coloquei o galão de gasolina em umas três sacolas com panos em volta para disfarçar o cheiro e coloquei numa mochila.
Usando um brinquedo do Leandro, fiz um dispositivo simples, juntei com pequenas mangueiras e uma bombinha de ar.  
Uma das pontas da mangueira eu coloquei dentro do galão de gasolina na mochila e a outra, passei por dentro toda minha roupa até meu pé direito.  Liguei mais uma mangueira dentro galão e a outra ponta na bombinha de ar que ficou na minha mão.  Então, quando eu apertava a bombinha, ela fazia pressão dentro do galão que empurrava gasolina para a outra mangueira despejando-a no chão, no meu pé.
Eram seis horas, quarta-feira, desci para a estação de trem de Guaianazes, para ir para o trabalho.  Passei as catracas e fiquei aguardando junto à multidão.
Nesse horário, são milhares pessoas pegando o trem, cada composição, vai lotada mesmo, em cada vagão você não consegue nem se mexer para arrumar os pés no local.
Entrei na primeira porta de um dos vagões do meio, fui caminhando para a ultima porta, pedindo licença e passando amarrotado pelas pessoas.  
Escutei reclamações do cheiro, xingos e senti cotoveladas e paulistinhas, mas não teve problema, continuei minha caminhada para o objetivo que era a ultima porta.
Quando cheguei na estação de Itaquera, eu estava a poucos passos do final do vagão, ou seja, a quarta porta, estava a alguns minutos de concretizar meu plano.
Pronto, sim, cheguei ao objetivo, estamos passando pela estação Patriarca e eles continuam reclamando do cheiro forte de gasolina.  Minha mochila estava vazia, eu deixara todo o conteúdo do galão nos pés dos passageiros pelo caminho que fiz, eu sabia que meu galão estava vazio e se tornou uma bomba em potencial, pois o gás deixado pela gasolina é extremamente inflamável.
Peguei o acendedor e gritei:
“Povo deste trem, malditos e desgraçados, tenho profundo ódio por vocês. Na realidade não tenho ódio apenas de vocês, mas de toda a humanidade”.  Riam de mim, gritavam comigo, me chamavam de louco.  Bem, continuei: “Hoje, é um dia que será lembrado pra sempre, e se algum de vocês sobreviver, diga ao mundo que eu gostaria de ser chamado de Terrorista do Trem da Zona Leste”.  
Acendi o acendedor. Alguns tentaram me agarrar, mas não tiveram tempo. 
Encostei o acendedor no rastro de gasolina que se espalhou rapidamente.  O fogo tomou conta primeiramente das pernas das pessoas e depois foi subindo pelos seus corpos.  Todos gritavam e se debatiam, mas não tinham muito o que fazer porque o estavam muito apertados.  
Pensei que o fogo se apagaria rápido pela falta de oxigênio, mas graças ao sistema de ventilação, o fogo aumentou. 
Meu corpo estava em chamas até o tórax, mas eu estava tão feliz e cheio de adrenalina que nem sentia. 
A composição estava em alta velocidade, e os vidros que não derreteram foram quebrados pelos passageiros em chamas tentando escapar. Algumas pessoas pulavam pra fora do trem e seus corpos eram retorcidos em postes e ficavam pelo caminho.
O cheiro de pele e pelo queimado era maravilhoso, eu via mulheres, homens e jovens gritando e se debatendo com fogo em seus corpos e cabelos.
Seus rostos se distorciam e cada vez que eles batiam nas chamas caia um pedaço de pele.
Ninguém mais prestava atenção em mim, então peguei a mochila e meu plano era acender o galão para explodir.
Quando peguei o galão, o abri e nem teve tempo de acender pois o mesmo explodiu automaticamente.
E é esse o fim da história.  Centenas de pessoas morreram, o vagão explodiu e se separou do principal o que ocasionou mais mortes, os fios elétricos queimaram e caíram nos vagões de trás, eletrocutando mais pessoas.
Tudo isso vi e escrevi antes de acontecer.

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